23.12.04

Em uma tarde qualquer, na sala de espera do urologista

Depois dos quarenta, você, homem moderno e preocupado com sua próstata, sempre acaba passando pelo urologista. Não sei se foi um dia em que fui levar o resultado do antígeno prostático do meu pai, não sei se foi o dia em que fui fazer o famigerado exame de toque.Não importa, o que nos interessará será o prólogo. Era uma tarde quente e normal de ribeirão. Quando digo quente e normal, quero dizer sobre aqueles dias em que chegar em uma sala de espera que tem um ar condicionado ligado é quase como cantar Heaven, I'm heaven... Entrego a carteirinha do convênio para a secretaria. Ela é do tipo que eu odeio (apesar de achar que ela é boa gente e eficiente). Odeio porque eu tenho mania de fazer pequenos comentários quando converso com pessoas que lidam com o público em geral e já têm aquelas falas-carimbo, prontas. Acho que é uma tentativa semi-tola de minha parte de transformar momentos feitos em série em momentos únicos e personalizados. Mania de artista. Mas, com essa secretaria é comentar no éter, ou seja, não tem ar, logo, o som não se propaga até seus ouvidos. Meus comentários simpáticos sobre a existência em geral seperdem, aumentando minha inadequação. Vou sentar rapidão nas cadeirinhas desconfortaveis, esperando ser chamado. Olho para a pilha de revistas na mesinha no canto da sala e pego uma para me distrair. Flap, flap, flap (páginas viradas com rapidez e descaso). Paro numa matéria sobre pessoas que inspiraram músicas. A Luiza do Tom, a Ana Júlia dos Los Hermanos, a (san)Drão do Gil. Começo a ler, com mais atenção, o depoimento da Sandra sobre a música que o Gil fez para ela, logo que se separaram. Num determinado momento, ela diz que sempre foi difícil essa música para ela porque tinha muitos detalhes da vida dos dois, ali, nossa caminha dura,cama de tatame. Continuo a ler e ela diz que depois que o filho deles morreu, tornou-se impossível escutá-la, que não aguenta a parte que canta os meninos são todos sãos. Uma onda de choro ataca meus olhos. A secretaria continua lá. Espero que a barreira de éter também impeça a propagação das lágrimas. Não consigo parar de chorar, não suporto pensar nessa dor transformada em poesia que depois foi transformada em outra dor. Será que ele já vai me chamar? Preciso parar de chorar! Pânico, pânico, pânico! Não fica bem entrar para fazer exame de próstata com os olhinhos marejados. Se, pelo menos, fosse sair do exame com os olhinhos cheios d'água, ainda poderia ter uma certa graça!

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