29.3.05

A alergia do Nicolau

Eu tinha asma quando era criança. Na minha época não tinha nada que dilatasse os meus pobres bronquíolos apertados pelo espasmo da reação alérgica. Tinha o vick vaporub que minha mãe passava no peito, em movimentos circulares igualzinho a propaganda da tv. Tinha também, conseguir dormir no colo, quase em pé, porque daí dava para respirar um pouco melhor. Eu tinha uma dermatite que deixava meus dedos bem detonados e me lembro muito bem de não brincar com argila no jardim da infância e ficar lá sentado com aquela cara de “diferente entre os iguais”, enquanto o resto da molecada brincava. Também não brincava nos montes de areia que ficavam pelas calçadas, das construções e reformas das casas porque tinha cocô de cachorro e poderia acabar com meus dedos. Quer dizer, não brincava é uma palavra muito forte, “evitava brincar” fica menos traumático. Quanto de tudo isso ajudou a me construir? Quanto dessa exclusão das argilas e das brincadeiras nas areias amontoadas ajudou a construir esse ser diferente entre os iguais? Depois que eu fiquei grande e cientista, umas épocas, via as alergias, como todo mundo, como uma resposta a um elemento estranho entrando em nosso organismo e provocando uma enlouquecida mobilização do nosso imuno-exército de defesa de leucócitos e outros ócitos. Será mesmo que isso é correto? Ou tudo não passa de metáforas do nosso mundo externo que tentamos (e conseguimos) enfiar também nos processos biológicos do organismo. Outro dia teve, numa capa da Veja, algo do tipo, novos testes sanguíneos podem perceber “esses assassinos invisíveis causadores de várias doenças”. Será mesmo o HDL, a glicose alta, as gorduras saturadas e trans e os vírus, pequenos assassinos? Será que um lipídeo, ou um vírus, tem moral? Será que uma célula branca é um soldado? Será que existe mesmo uma guerra sendo constantemente travada entre nosso mundo interno e o externo? Será que o sistema imunológico realmente tem essa noção de dentro e fora? De próprio de si ou não? Ou tudo isso não passa de um ponto de vista de alguém, de um observador, que vê um organismo, um corpo, um ambiente, um dentro, um fora? Será que dentro de nós existe fora de nós?Nicolau também tem alergias, asma e dermatites. A dermatologista disse que ele não pode nem chegar perto de terra e derivados. Ele vai para a escolinha e planta na horta e os dedos alergiam-se. O que valerá mais? Não brincar na terra para não piorar a dermatite ou ir lá, pular, sujar e detonar as digitais? Será mesmo que vale a pena evitar o “mundo externo” quando esse mundo insiste em se chocar com nossas incansáveis células de defesa? Quanto disso tudo construirá um ser-diferença, uma exclusão promovida não pelas imunoglobulinas, mas pelo discurso higiênico que temos sobre elas, sobre nós e o ambiente e nosso contato com os outros? Metáforas sobre a guerra incrustadas em nossas células, nosso eu defendendo-se do que é estranho. Barreiras entre os states-américa-branca-limpa-orgânica-funcionando e o caos-méxico-mestiço-sujo dos invasores ilegais. Células brancas versus inimigos negros. Linfócitos anglo-saxões atacando invasores mulçumanos. Quanto uma metáfora pode transformar-se em verdade científica biológica?
Será que desenhei mais porque brinquei menos com barro? As alergias me construíram porque assim eu reagi a elas? Um nadador olímpico outro dia estava na TV e disse que foi para as piscinas por conta da alergia dele. Ele nadou, eu desenhei. Reações diferentes a interações semelhantes. Eu e o ambiente. Nós e os outros. Dentro e fora. Próprio e não-próprio. Amigo e inimigo. Ataque e defesa.
Por que reagimos diferentemente a perturbações tão semelhantes vindas de fora de nós?
Porque o que mata não é bala, mas o buraco que ela faz*!

Esse texto contém idéias de Humberto Maturana e Francisco Varela)
*Laurie Anderson

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