Algumas músicas terminam devagarzinho, abaixando o volume e, por mais que a gente ainda queira continuar a escutá-las, elas se vão. É como se fossem tão bonitas que vão aos poucos, para acostumarmos com o fato de ter que ficar sem elas.
Fade out.
Quando eu era pequeno, uns cinco, seis anos de idade, meu pai quase sempre trazia um chocolate prestígio quando chegava da rua, para mim. Naquela época, o papel metalizado que envolvia o bombom era dourado e, sinceramente, não consigo saber o que me deixava mais fascinado, o cheiro doce do coco e cacau, o dourado da embalagem interna ou a eterna lembrança dele me trazer o chocolate.Fazia um tempo já que meu pai estava longe, mas, nos últimos tempos, a quantidade de antibióticos, sondas e marcadores de pressão e frequencia tinha aumentado bastante. Ele estava bem diferente dele mesmo. Sem dentadura, a pele da boca afundada como um pano que colocamos para cobrir alguma coisa que já não está mais lá. Uma cânula de alimentação entrando pelo nariz. O olhar distante, as mãos inchadas.Ele tinha um jeito particular de assobiar quando chegava em casa que eu aprendi, com o tempo, a imitar. Odiava quando ele bebia e fazia discurso. Meus amigos adoravam, iam todos beber com ele no boteco. E eu brigava com ele e ia buscá-lo no bar da esquina, bravo, com se fosse o pai dele. Gostava muito de um discurso. Quando morria algum amigo, ele ia ao velório e fazia até as alças do caixão chorarem. Festa de final de ano, sempre tinha discurso. É, porque ele só bebia de final de ano, mais ou menos de agosto até abril do ano seguinte.E todo dia fazia relaxamento, meditava com fitas gravadas de falas relaxantes, que ele próprio gravava, sobre música suave. Na época do chocolate prestígio do papel dourado, a grande sensação era quando ele hipnotizava pessoas em reuniões familiares e de amigos da pequena Tambaú. Passou a pé, enquanto pode, pelo shopping e centro da cidade, sem discriminação de possível lugar melhor para efetuar compras. Viciado em coca-cola, como o filho mais novo, sempre disputávamos à tapa, uma pet na hora do almoço. Aliás, foi num almoço em que faltou o refrigerante que ele, depois de virar um copo de água gelada, cunhou a frase: "Água é tão bom, nao sei porque bebo coca!"Eu sentia orgulho quando ele ia visitar a escola que estudava, era o único pai que fazia isso. Ficava com vergonha, mas gostava.Uma vez, uma amiga disse para mim que a herança que um pai deixa para a gente é feita das coisas que ele ensinou, fazendo as coisas que ele fazia, vivendo a vida junto que ele vivia. Não eram as coisas, eram as ações sobre as coisas que iriam sobrar, depois de tudo.Tinha certeza que não iria chegar perto do caixão, porque nunca tinha chegado perto de um. Mortos, os únicos que vi e peguei foram aqueles, aos pedaços, no formol no curso de biomedicina. Mas esses não contam, pois já são quase plástico. Quando entrei no velório e vi meu pai, de longe, ele estava parecido com meu pai, de novo. Estava de terno e boné e, de novo, com a dentadura. A roupa, eu escolhi e combinei os tons de cinza e azul da camisa, gravata, boina e paletó porque ele iria ficar muito bravo de subir desalinhado. E lá, no caixão, ele estava lá, de novo. Tranquilo, calmo, diferente dos tubos, sondas, fios e boca vazia da CTI.E daí, eu cheguei perto e olhei para ele. E fiquei calmo e (quase) feliz. E ele estava lá de novo, indefectivelmente lá. Apesar de já ter partido.
para o meu pai, porque ele se foi
e para nós, porque ficamos.
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Um comentário:
obrigado, luiz!
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