14.8.06

Se eu Pudesse

Se eu pudesse, não faria nada. Quer dizer, não fazer nada é uma frase muito forte, continuaria a respirar, a bater o coração, a pensar, a escutar, a olhar, a andar por aí, a me emocionar. Se eu pudesse, seria um sucesso de público e não de crítica. Viveria do que escrevo e escreveria o que vivo. Pintaria assim, em algumas manhãs quase passadas, telas imensas com muita tinta escorrida ao som de um iPod de 60 gigas entornando uma trilha randômica finita, porém sem fim.
Se eu pudesse, seria um dono de casa, um gerente administrativo do lar, levando filhos ao supermercado, ao shopping, regulando pedidos piantes incessantes de três pintinhos cocorocós. Se eu pudesse viveria de rendas. Parece óbvio dizer isso, mas não é. Tem muita gente que trabalha, trabalha, trabalha, iludidas que estão pelo céu prometido pelos primeiros capitalistas. Saiu a compra do loteamento celeste pelas boas ações e ausência de pecados e entrou a reserva do condomínio na vida eterna pelo fruto de nosso trabalho terreno. Quer truque mais esperto do que trabalhar e ainda achar que dignifica? Só assim para viver feliz, fazendo algo que (talvez) não nos interessa para pagar contas que (talvez) não precisamos ter.
Se eu pudesse, continuaria assim, para sempre, sem pisar nas pessoas, reparando nos fins de tarde, nos tons de azuis, nas luas, nos sorvetes, nos sons, nas pessoas. Continuaria a almoçar com a grande família aos domingos, a comer sobremesas consistentes de chocolate e a falar mal dos outros na hora do café.
O dinheiro básico brotaria em meu pomar, sem nem ao menos regá-lo. Sem trabalho nenhum, sem ser fruto, sem ser pagamento, sem ser merecimento, sem ser reconhecimento de nada. Se eu pudesse, além de tudo, nem faria caridade, porque não teria culpa, não seria responsável pelos que não colhem do mesmo maná nesse meu "se eu pudesse" paraíso.

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