20.12.04

A árvore dos chicletes

Sempre odiei ginástica, se hoje faço é por conta do colesterol do mal que insiste em desafiar os níveis recomendados pela OMS. Sempre odiei educação física e fiz de tudo, menos beijar na boca, para escapar desse fardo. Nas épocas do antigo primeiro grau, eu até resolvi trabalhar para conseguir um atestado de dispensa da tortura semanal. Tinha vergonha de ficar de shorts, de ser branquelo, não gostava de jogar futebol e, por isso tudo, essas aulas eram um suplício. Por conta dessa ginasticofobia, enchi os picuá de meu pai para ele me arrumar um emprego, para que eu pudesse arrumar um atestado. Pensando nisso tudo, sempre dou risadas quando alguém me diz como era bom ser criança, quando não tínhamos nem preocupações, nem compromissos.Então, meu pai me arrumou um serviço de atendente na loja de materiais fotográficos do Tony Miyasaka, de quem ele era amigo. A loja do Miyasaka sempre foi uma referência em fotografia em minha cidade. Os fotógrafos de casamento, os repórteres, os publicitários, os modernos, todos sempre iam atrás de algum conselho dele. Eu diria, hoje em dia, que eu fui um treinee de balconista, já que trabalhei um mês e não recebi nada. Quer dizer, seria injusto dizer que não ganhei nada, ganhei meu tão sonhado atestado e consegui minha alforria física e futebolística. Apesar de minha experiência como estagiário não ter sido das melhores e de meu relacionamento com ele ter sido ofuscado por pequenos conflitos jáprevistos por Karl Marx, minhas lembranças do velhinho que tudo sabia de fotografia, atrás do balcão, placidamente exercitando a difícil arte zende consertar fotografias, são as melhores. Outro dia, já sabendo que ele tinha morrido, entrei distraidamente no shopping sta úrsula e me deparei com uma exposição de fotografias, feitas por ele, sobre minha cidade. A primeira foto que vi era dele próprio, novinho, cabelo raspado na nuca, olhando para o infinito para a pose da foto. No meio da exposição, vi coisas e lugares que eu conheci e agora não existem mais. A Casa das Paineiras, uma residência moderna-sputinik-pastilhas-anos-sessenta, com um alpendre amebóide do qual brotavam imensas paineiras. O Cine Centenário, cujo interior tinha umas figuras sub-portinaris pintadas na parede. Lá assisti muitos planetas dos macacos com carteirinha falsificada.Foi ridículo começar a chorar no meio de um shopping semi-lotado de pessoas-presentes-de-namorados. Senti cheiros antigos, sensações antigase emoções eternas (pelo menos enquanto duraram). Saí do shopping a pé, incrédulo com minha capacidade de ficar emocionado no meio de uma tarde normal, de um dia normal, entre uma loja Riachuelo e uma loja de bonequinhos de ação.Andando por ali perto, olhei para uma árvore que já tinha visto, mas não com os olhos fotográficos daquele novo momento. Uma árvore dessas comuns de rua que a turma da escola pública ali de perto, enche de chicletes gastos. Nela estão centenas de bolinhas pregadas pelo tronco, dezenas de cores e tons de cores dos mais variados e finados sabores. Uma legítima representante de uma construção coletiva e em constante transformação. Cada dia, novos chicletinhos são adicionados pela molecada. Puro momento do presente sendo formado e preste a ser lançado em direção ao futuro. Puro possível lugar histórico que daqui a pouco não existirá mais. Pura arte viva, pedindo um registro antes que algum certinho resolva limpá-la.Encharcado pelo olhar/obturador do velhinho zen criador/consertador de imagens, olhei para a árvore moderna no meio de nosso cotidiano e pensei: preciso fotografar isto!

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