O velório do meu pai foi uma festa. Não pude escrever isso antes para não correr o risco de ser mal entendido. Mas que foi uma festa, a lá, isso foi. Depois que ele morreu, minha opinião sobre as formalidades e os rituais desses acontecimentos marcantes, mudaram por completo. Eu era do tipo que encontrava um conhecido que havia perdido alguém muito próximo, apertava a mão e não falava nada. Ficava só com aquela cara de sinto muito, mas não dizia nada, para não ser óbvio. Mas como não ser humanamente comum nessas circunstâncias? Ou melhor, para que ser desumanamente incomum numa hora dessas? Tudo que você quer, quando nessa situação, é escutar um "meus sentimentos" seguido de incontáveis outras frases iguais, ditas por outras pessoas e adicionadas ao seu cérebro, em gotas, como um remédio homeopático confortador do espírito.
Um pouco antes dele morrer, minha preocupação era saber o que fazer? Quem procurar? Como tudo aconteceria? A Tina me disse que era só ficar parado (e chocado) que o mundo existiria ao redor. E dito e feito.
Ligaram do hospital e a partir desse momento, o resto foi sendo construído. Lembro de ver um catálogo de caixões para escolher um modelo, de ter uma seção infantil nesse catálogo. De ter uma vontade nervosa de rir nessa hora. Do homem da funerária, bem vestido, dizer que meu pai iria ficar meio apertado no caixão standard e que precisaria de um extra large. E que isso aumentava uns mil reais no preço total, mas o seguro iria pagar. E que minha irmã, enlouquecida que estava, acabou escolhendo o plano double-plus advanced hiper mega-master-funeral.
Uma das primeiras consequências dessa escolha foi que a sala em que meu pai ficou tinha até uma saleta privê com frigobar, sucos, lanchinhos e etc. Seja num capuccino, nos amigos dos tempos de tambaú e nos da receita federal, seja numa história engraçada dos tempos dele de fiscal, contada pelo Goiaba, amigo da família, seja num esboço de sorriso em ver alguém querido que você não via faz tempo, a vida sempre insiste em cutucar e chamar a todos de volta. Meu irmão mora nos estados unidos, tinha sido avisado no dia anterior e o suspense era se ele conseguiria chegar a tempo. A hora se aproximava e nós, os familiares, apesar de semi-tranquilos, ainda estavamos preocupados com isso. Logo depois que começaram as orações, meu irmão entrou e todos começaram a esgoelar. Chorei, chorei, choreeeei, na mesma intensidade do cauby cantando camarim. Fiquei lá, esgotado e calmo, encostado no ombro da claudia num momento de paz e silêncio.
Depois de um tempo, ela virou para mim e começou a perguntar "São duas horas, não está na hora do..." A frase foi interrompida pelas portas do fundo deslizando, de onde surgiu uma mulher com um maço de rosas e o spalla da sinfônica tocando músicas tristes de violino. A choradeira foi geral, mesmo eu que já estava seco e sem neurotransmissores, cai na água novamente. No cérebro dos familiares uma mesma pergunta se formava: Quem contratou o violinista? Depois, descobrimos ser esse mais um dos efeitos colaterais do plano funeral double master advanced plus good contratado pela minha irmã. Antes, ficamos achando que tinha sido um grand finale encomendado, décadas antes em alguma mesa de bar, pelo nosso próprio pai.
E fomos nós, os parentes, os filhos, os netos, carregando o caixão e cuidando para não pisar, uns nos pés dos outros, porque a distância era bem pequena. O violinista na frente, todo mundo olhando e nós, chorando fundo atrás. Foi bem do jeito do meu pai, uma performance híbrida de richard claydmann e glauber rocha, etilicamente romântica, dramática, emocionalmente sensível e exagerada. Faltou só um discurso que, se tivéssemos cabeça, bem que poderiamos ter pedido para o goiaba fazer. Voltei para casa de minha mãe vazio e com muita fome, passamos numa padaria e compramos pão, coca-cola, queijo e ficamos lá, sentados na velha mesa dos almoços dominicais.
Depois de uns dias, fomos a uma praça, com todas as crianças da família, com inúmeros balões de gás, canetas hidrocores e um cd player portátil que tocava vinícius para crianças. Escrevemos mensagens nas bexigas e as soltamos para o vovô, lá no céu. E elas foram subindo, subindo, subindo, até sumirem de vista. E ficamos nós lá, quase felizes, olhando para cima, para o infinito e além.
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2 comentários:
Tio, acho que o velório do vô, foi esse evento porque foi o velório do vô, e eu acho que ele só aceitaria um desses cheio de reminiscências, histórias engraçadas e um incontável número de alegrias permeadas pela lembrança. Ainda não consegui escrever sobre o vô no meu blog. Subrs
Cleido, é incrível como, mesmo em momentos de profunda tristeza, você consegue extrair poesia e humor dos fatos.
Parabéns pela escrita e que seu pai esteja num lugar lindo!
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