23.6.07

Meu amigo pedófilo

Existem duas coisas que nunca me interessaram na vida, ser advogado ou ser pedófilo. O resto, de alguma maneira, já passou pela minha cabeça: assassino profissional, cantor de tango, coveiro, artista plástico, caixa de banco, psicoterapeuta, carteiro, médico, confeiteiro e pesquisador.
Quando eu tinha uns nove anos, estava brincando em frente de minha casa com um graveto, quando apareceu um menino loirinho da mesma idade e perguntou o que eu estava fazendo. Com voz de semi-tédio, acostumado a não ser entendido em minhas brincadeiras espaciais por uma cambada de meninos que só sabiam brincar de mocinho e bandido, respondi que estava jogando meu bastão de raios laser. Para a minha surpresa, ele ficou bastante interessado e começamos a brincar juntos. Foi a partir daí que nos tornamos amigos. Descobri que ele gostava de desenhar, fazer HQs, e se interessava muito, assim como eu, pelo espaço sideral e seus habitantes.
Passávamos as tardes pós-escola, no bosque municipal, procurando cipós nas árvores para balançar, cristais de rocha e pequeninos, influenciados pelo “Terra de Gigantes”.
Foi uma infância feliz, não resta a menor dúvida, apesar de ter tido algumas dúvidas, na época em que ela se desenvolvia. Ele é meu amigo desde então. Mas, faz uns bons anos que não falo com ele. No meio do caminho aconteceram coisas, escolhas, jardins da vida que se bifurcaram.
Eu desenhava bem, ele desenhava bem também. Mas a vida dele foi para outro lado. Teve uma época, no auge da juventude, que não sei por que cargas d’água, ele foi embora lá pro sertão do cú do Judas, ganhar dinheiro. Mas, vocês bem sabem né? Nietzche disse isso, se olhares para dentro do abismo, o abismo olhará para dentro de ti. E o abismo olhou feio. E escavou sua alma em busca das cavernas-irmãs repletas dos desejos-esmeraldas obscuros, brutos e sugadores de luz, típicos das cavernas da psiquê humana.
Vocês podem imaginar o buraco que a vida real e o universo material podem causar numa alma sensível, despreparada para ser sensível e despreparada?
No mesmo ano que eu casei, ele também se casou. Eu convidei e ele não foi, ele convidou e eu não fui. Já nesse tempo, não havia mais que três frases entre nós.
Uma vez fiquei chocado quando vi uma reportagem sobre um cara que, literalmente, comia criancinhas, sugava o sangue delas depois de comê-las no outro sentido do verbo. Fiquei triste e chocado, imaginando um cara lá longe, que não conheço, com uma fome, um desejo, em uma espécie tão específica (as criancinhas mortas) e que, além do mais, incontrolavelmente tomava conta dele, ao ponto de ter que continuar a fazer o que fazia, para alimentar o brilho obscuro de seu diamante louco. Ó jornada triste através das cavernas da mente humana!
Outro dia, me disseram, e depois eu confirmei na internet, que meu amigo está foragido da cidade dele, acusado de pedofilia. Várias denúncias, fotos explícitas achadas por um funcionário, no computador. O caso clássico de quem tem uma fome muito específica e sabe que a comida que come, gera culpa, dor e arrependimento. Até, numa interpretação clássica de almanaque fontoura, ser descoberto por alguém e acabar com tudo aquilo.
Deixar as fotos no computador da loja? O que mais isso poderia significar?
Não acho que ele foi sempre assim. Acho que o abismo olhou para dentro dele e pinçou algumas dark-gemas, trazendo-as para a tona. Estava separado e morava sozinho. Ele poderia ter sido um artista como eu sou, eu penso. Mas, naquela hora da vida, o caminho se bifurcou e, no dele, tinha um buraco estreito que levava ao centro da terra.
E eu li a notícia e pensei ter ficado pouco chocado. Mas, se fiquei pouco, por que escrevo sobre isso, aqui e agora? Fiquei triste, muito triste com aquele ponto em que a história dele se afastou de nós. E pensei nos buracos de minhoca da cosmologia que dobram o espaço e criam atalhos entre dois pontos do espaço, ou do tempo. E pensei também no filme “Lúcia e o sexo”, no buraco redentor de buracos que, ao passarmos através dele, nos leva de volta a um ponto antigo da história, antes do “olhar para dentro do abismo”. E ter uma nova chance de mudar tudo. Olhar para cima e buscar novamente cipós entre as árvores, achar cristais encharcados de luz.

Um comentário:

Anônimo disse...

Santíssimo, como você escreve bem. Estou morta de inveja! rsrsrsrsrsrs...o tema dos pecados ainda está comigo...Beijos,
Tania